António Vitorino - jurista
Há que saudar o sucesso da presidência portuguesa, tanto dos seus responsáveis políticos como dos diplomatas envolvidos. Foi o triunfo do método e da perseverança, não isenta de arrojo. Ainda me lembro do cepticismo com que os "meios europeus" de Bruxelas receberam as palavras do primeiro-ministro José Sócrates na noite do Conselho de Junho que aprovou o mandato quando anunciou que a intenção era ter o acordo final já no Conselho informal de Outubro.
Pois bem, ele aí está, o acordo que culmina a mais curta Conferência Intergovernamental da história da União. É verdade que tal se fica a dever porque se trabalhou com base no Tratado Constitucional e num mandato detalhado aprovado durante a presidência alemã. Mas só quem não está familiarizado com estas coisas europeias é que pode ignorar que a recta final é sempre a mais difícil porque é aí que cada país avalia o equilíbrio global do acordo e... se não estiver contente pode criar reais dificuldades!
Desta feita as coisas também se passaram assim. E o Tratado de Lisboa honra o perfil das três sucessivas presidências portuguesas da União.
Há contudo que não subestimar três riscos com que nos iremos confrontar no período de ratificação que se iniciará após a assinatura do Tratado previsto para 13 de Dezembro em Lisboa.
O primeiro risco é que a controvérsia sobre a forma de aprovação do Tratado acabe por diluir o conteúdo e as inovações do próprio Tratado. Decidir da forma de aprovação é sem dúvida uma questão importante. Mas parece-me avisado que Portugal postergue essa decisão para um momento posterior à assinatura do Tratado. A visibilidade que lhe advém de exercer a presidência acabaria por fazer da decisão portuguesa (que se quer livre e apenas em função dos nossos interesses como Estado) uma peça relevante do debate sobre a forma de aprovação noutros países. Evitar essa instrumentalização significa reforçar a nossa capacidade própria de decisão. E adoptá-la sem tibieza, assumindo todas as suas implicações na vida política interna.
O segundo risco tem a ver com a ilegibilidade do novo Tratado. Com efeito, o Tratado Constitucional teria decerto muitos defeitos, mas ao assentar numa preocupação de codificação dos tratados existentes fazendo-os convergir para um texto único, o defunto Tratado Constitucional era susceptível de uma leitura mais fácil e corrida. Ora a decisão tomada no mandato de Junho de abandonar a vocação constitucional do Tratado, mantendo a existência de dois tratados (o Tratado da União e o Tratado sobre o Funcionamento da União), com remissões recíprocas, e adoptando a técnica legislativa de emendas pontuais aos Tratados vigentes, tudo resulta numa dificuldade acrescida de leitura (e de compreensão) pelos não especialistas. O retorno à técnica clássica de redacção dos Tratados vai exigir um esforço de informação e de comunicação acrescido, desde logo pela publicação de um texto suficientemente claro e preciso sobre as inovações introduzidas pelo Tratado de Lisboa. E isto independentemente da forma de ratificação que venha a ser escolhida entre nós.
Este esforço de informação faz parte também da resposta ao terceiro risco: o da deturpação do conteúdo real do Tratado. Vozes apocalípticas logo vieram dizer que vinha aí o directório das grandes potências europeias, que se tratava de impor o federalismo à força, que a Comissão iria definhar, que se estava a "militarizar" a Europa, inclusive que se estaria a fazer reentrar a pena de morte por via da Carta dos Direitos Fundamentais! Estas reacções típicas de especialistas em sound bites contam com a complexidade do Tratado como aliada, sabendo que a desmontagem destes "fantasmas" exigirá sempre tempo e muita pedagogia até que se possa repor a verdade ou delimitar a exacta dimensão das críticas assim formuladas.
Não será possível virmos a ter um debate racional sobre o Tratado?
Fonte: Diário de Notícias, em 26 de Outubro